Claro que a Dinamarca não tem culpa. É uma democracia, o seu governo não controla nem censura jornais e pratica liberrimamente o direito de livre expressão. Por isso, merecia plenamente ser apoiada pelos estados democráticos, merecia especialmente ser amparada pelos países confrades da União Europeia e devia ser ressarcida pelos prejuízos e danos sofridos pelos seus cidadãos no país e no estrangeiro.
Por outro lado, manda a justiça e o bom senso que se refira que os povos muçulmanos também têm direito à indignação por verem as suas crenças religiosas achincalhadas e os seus valores postos a ridículo.
Quando, há bem pouco tempo, o Expresso publicou um cartoon representando o Papa João Paulo II com o nariz enfiado num preservativo, e quando há uns anos Herman José apresentou na televisão uma rábula sobre Cristo e a Última Ceia, muitos católicos manifestaram vivo repúdio e criticaram o que achavam serem excessos intoleráveis de liberdade. É evidente que não queimaram bandeiras nem atacaram representações diplomáticas porque eram de costumes brandos e de civilizações mais avançadas que estes bárbaros do Islão.
Temos, portanto, que a reacção a estes excessos de expressão e de comunicação existe quer no Ocidente cristão e civilizado, quer no Islão bruto e retrógrado. O grau de violência e de exaltada adesão a estas manifestações é que é muito diferente, num e noutro campo.
A História está repleta de tragédias e de sangue, demonstrando que o sagrado é um território de grande delicadeza e melindre e que a sua invasão gera, inevitavelmente, reacções de fúria avassaladora e de retaliações cruéis. E estas ondas de violência são invariavelmente amplificadas pelo caudilhismo político e pela psicologia das multidões.
Quando se representa numa caricatura um popular de turbante em forma de bomba a arengar uma jihad, entende-se um objectivo terreno e profano: condenar o terrorismo, apelar à paz, apresentar os suicidas como criminosos e não como mártires. Os leitores sorriem, o riso faz bem à alma, enriquece a crítica e anima o quotidiano.
Mas quando se apresenta Maomé escarnecendo dos seus fiéis e das suas práticas ou Cristo com um míssil nas mãos, atinge-se o território mais íntimo das crenças e das raízes fundadoras do ser humano.
Esta dimensão sagrada, para lá da materialidade, deve por isso ser abordada com delicadeza. Há zonas emocionais restritas, nomeadamente as da afectividade e da religiosidade, de que a pessoa humana é especialmente zelosa e que não gosta de ver expostas em público e muito menos alvo da chacota geral.
Para além desta constatação, outra se impõe: é que não há liberdades absolutas, tal como não há direitos absolutos. Sem dúvida, a liberdade é um direito humano inquestionável e a liberdade de expressão é uma condição fundamental quer para a realização pessoal quer para o progresso das nações.
Mas há o uso e o abuso. Nem tudo na vida da pessoa, ou na abordagem da personalidade, é risível e escarnecível. Há limites que qualquer um se deve auto-impor, mediante a aprendizagem e convivência cívica. A prática larga, e ainda bem, da liberdade nos países democráticos tem que coabitar, num mundo globalizado, com concepções bem mais restritivas noutras paragens.
Também há um código de conduta a cumprir nas autoestradas da expressão e da comunicação. Se esses limites não forem respeitados, o choque será inevitável: com condutores “desregulados” em sentido contrário, ou com imposições vindas de cima.
Não se veja nisto a apologia de qualquer censura do antigamente ou a defesa dum jornalismo asséptico, sem criatividade e sem humor.
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